Dar de comer aos famintos e salário aos que trabalham: a dupla função dos géneros alimentares na actividade caritativa da Misericórdia de Viana da Foz do Lima (séculos XVI-XVIII)

António Magalhães

Resumo


As catorze Obras de Misericórdia da doutrina cristã estabeleciam o ambicioso programa das Santas Casas. De entre as corporais, a quarta, «dar de comer aos famyntos», e a quinta «dar de beber aos que am sede», segundo a redacção do Compromisso de 1500[1], assumiram uma importância fundamental num tempo em que, para largas camadas da população, assegurar uma dieta mínima estava na primeira linha das preocupações diárias[2]. Na Misericórdia de Viana da Foz do Lima[3] a disponibilização de géneros alimentares aos pobres que se abeiravam da instituição, também assumiu uma assinalável centralidade no programa caritativo. Porém, a importância desses bens não se esgotava nas práticas caritativas, assumindo, subsidiariamente, uma função remuneratória. Na verdade, os géneros alimentares serviram como meio de pagamento aos assalariados da instituição, fosse no quadro das suas retribuições fixas e permanentes, fosse como instrumento de valorização ou recompensa aos mais destacados.

É dentro desta dupla imagem de agente fundamental das práticas de caridade e instrumento de gestão que iremos consagrar a nossa atenção à importância que tiveram ao longo de três séculos na Misericórdia vianense, procurando identificar as principais marcas de continuidades e as mudanças mais significativas.

Nos tempos imediatos à instalação da confraria as práticas caritativas eram, compreensivelmente, pouco significativas tendo presente o contexto económico e social da localidade, marcado por um forte crescimento e uma participação muito activa na expansão marítima do reino português[4].

Grande parte das esmolas procurava responder a questões pontuais, sem obedecer a um programa sistemático de dádivas em dias fixos ou em datas festivas.

Além disso, não havia ainda listas organizadas de pobres que permitissem alguma racionalidade nas ajudas que eram disponibilizadas. Nesses primeiros anos, a actividade caritativa articulava-se essencialmente na distribuição de pequenas esmolas em dinheiro ou em géneros alimentares, broas de pão, na maior parte dos casos.

Porém, a partir de meados do segundo quartel do século XVI, assiste-se a uma progressiva organização das práticas de caridade, surgindo os primeiros rois de pobres regularmente assistidos em dias fixos, geralmente ao domingo e à quarta-feira. A consolidação deste modelo não impediu que continuassem a merecer atenção os carenciados que se abeiravam das instalações, naquilo que as fontes regularmente classificam como «as esmolas aos pobres da porta»[5].


[1] Para o texto de 1500 seguimos a versão editada por Ivo Carneiro de Sousa da cópia manuscrita existente na Misericórdia de Coimbra. Cf. SOUSA, Ivo Carneiro de – O compromisso primitivo das

Misericórdias portuguesas (1498-1500). Revista da Faculdade de Letras, n.º 13 (1996). 295.

[2] A distribuição de alimentos era acarinhada por diferentes instituições em contextos geográficos diversos. Na abadia de Cluny, em épocas festivas, chegavam a juntar-se às suas portas, mais de dois mil pobres. Cf. GEREMEK, Bronislaw – A piedade e a forca: história da miséria e da caridade na

Europa. Lisboa: Terramar Editores, Distribuidores e Livreiros Lda., 1995. p. 49.

[3] Topónimo da actual cidade de Viana do Castelo num período compreendido entre o foral de

1258, outorgado pelo rei D. Afonso III, e a elevação a cidade em 1848, no reinado de D.ª Maria II.

[4] Frei Luís de Sousa classificava a localidade como sendo uma «vila das mais insignes deste

Reino», «terra cheia de gente rica e muito nobre, de grande trato e comércio», «vila florentíssima e em esta de ~ua nova Lisboa». Cf. SOUSA, Frei Luís – A vida de dom frei Bertolomeu dos Mártires.

Lisboa: Imprensa Nacional Casa da Moeda, 1984. p. 117.

[5] Cf. Arquivo da Santa Casa da Misericórdia de Viana do Castelo, doravante ASCMVC, Livro de Receita e Despesa 1545, fl. 24v.


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