Dar de comer aos famintos – subsídios para a história da Cozinha Económica de Ponta Delgada (s. Miguel – Açores)
Resumo
O binómio pobreza e assistência é constituído por conceitos que, embora imprecisos, reflectem uma sociedade e uma dada época. Ao longo dos séculos, a pobreza não foi sempre encarada da mesma forma e o socorro dispensado aos mais desvalidos também variou consoante os valores e as normas dominantes. Segundo Maria Antónia Lopes «os pobres são massas anónimas que escapam quase totalmente ao esforço interpretativo do historiador» enquanto as «modalidades de assistência adoptadas (ou não) em cada momento histórico reflectem simultaneamente as mutações da realidade social que socorrem e as atitudes e preocupações que a sociedade (…) reserva aos seus pobres». De facto, por entre uma diversificada tipologia de pobres (incapacitados, impossibilitados ou falsos pobres…) as respostas sociais foram oscilando entre a caridade e a tolerância ou o controlo e a repressão, conforme já demonstraram Michel Foucault e bronislaw Geremek.
Em Portugal, no século XIX, a Monarquia Constitucional desenvolveu um considerável esforço para erradicar a mendicidade e a vagabundagem e, tanto quanto possível, socorrer a indigência e os doentes desvalidos por via da intervenção do Estado, acrescida do contributo da Igreja e das Misericórdias ou da relevante acção dos particulares movidos, no seu conjunto, mais pela compaixão do que por ideais humanitários. Não obstante o debate em torno das práticas filantrópicas e os primeiros passos de uma assistência pública de feição estatal, ainda se assistia a uma sobreposição entre a caridade (de matriz cristã e configurada nas esmolas dos particulares) e a beneficência, mais racional e laica, melhor organizada e assente em critérios bem definidos quanto à distribuição de socorros. No pensamento de finais de oitocentos, a questão da mendicidade, indissociável da pobreza, estava implícita a todos os «projectos de civilização» – bem ao gosto da época – pois enquanto realidade visível constituía um sinal de retrocesso que urgia esbater. Para Julião Quintinha se a mendicidade era uma consequência do meio social, a sua responsabilidade deveria ser imputada a todos os cidadãos de forma a mitigar a presença pública de esmolantes e de sem-abrigo – um dever do Estado, mas não uma obrigação. Daí, a relevância da intervenção do particulares. Grandes impulsionadoras de práticas beneficentes foram muitas senhoras das elites sociais, incluindo, no vértice, as próprias rainhas que, por intermédio do seu poder e influência deram resposta a anseios caritativos, inerentes ao espírito beneficente, mas também aos imperativos morais e religiosos, pois a herança católica pesava, e muito, entre asmentalidades femininas dominantes. Aliás, reconhecia-se à mulher – dona de casa e mãe de família – a natural inclinação para as obras de caridade, não obstante o contributo masculino no socorro aos mais desvalidos, por idênticos motivos, mas acrescidos do objectivo de afirmação e prestígio social. Por outro lado, as iniciativas úteis ao próximo e à sociedade em geral, constituíam um meio de intervenção feminina no domínio da esfera pública em que predominava a hegemonia varonil. Daí, a multiplicação de «festas de caridade» e de diversos eventos, organizados pelas damas de elite que aliavam a angariação de fundos para as obras pias como convívio e a sociabilidade mundana. Em conformidade com o seu status social, senhoras e meninas deviam dedicar-se à beneficência.
Em Ponta Delgada, na ilha de S. Miguel esta foi, igualmente, a realidade predominante na censúria oitocentista. A caridade vertical era uma prática corrente, emanando dos mais ricos a favor dos mais pobres, por vezes com o incentivo e apoio das autoridades locais. Os cenários de pobreza eram uma constante num território marcado por profundas clivagens sociais. Sendo a ilha mais populosa e também a mais próspera do arquipélago dos Açores, a riqueza, porém, acumulava-se nas mãos de uma diminuta elite terratenente que se contrapunha a uma imensa população pobre a analfabeta. As crises de subsistência, as catástrofes naturais e a dependência das classes dominantes agudizavam as carências quotidianas sentidas pela ampla camada de artífices, jornaleiros ou trabalhadores rurais e pescadores, cuja miséria e incerteza do sustento os atirava para a base da pirâmide social, quando não para as franjas sociais.
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