Transi 5: A vida a prazo

Continuação dos artigos: Transi 1. As artes da morte; Transi 2: O corpo em decomposição; Transi 3: Viver com os mortos; e Transi 4: A didáctica da morte.

“A tragédia da morte consiste em transformar a vida em destino” (Malraux, André, L’Espoir, Paris, Gallimard, 1937, p. 225).

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Fig 43. Dança da Morte. Igreja de Sta Maria. Beram, Croácia. 1474. (Pormenor).

Nas danças da morte, ressalvando o tolo (ver O Louco e a Morte), existem dois tipos de protagonistas: os ainda vivos, estarrecidos, e os mortos, eficientes, fogosos e foliões. Os ainda vivos estão dispostos segundo a sua condição terrena, desde o papa ou o imperador até ao desamparado e à criança. Todos identificáveis pelos seus símbolos mundanos. Por exemplo, a coroa e o ceptro do rei ou a mitra e o báculo do papa… Em contrapartida, os mortos não evidenciam nem hierarquia nem distinção. As tão propaladas universalidade e igualdade na morte coexistem com a desigualdade e com a discriminação terrenas. A ordem social não agoniza, reitera-se. Não existe qualquer colisão com as prerrogativas e as conveniências cortesãs ou eclesiásticas. Uma coisa é a desordem do além, outra a ordem do aquém. Entre ambas, há lugar para catarse.

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Fig 44. Dança macabra. Pinzolo. San Vigilio. 1539. Parede da igreja virada para o cemitério. Pormenor.

Nos Ditos dos Três Mortos e dos Três Vivos, três mortos confrontam três nobres. A morte e a nobreza face a face. Pode-se argumentar que os ditos dos mortos valem para todas as pessoas, nobres ou não. Afigura-se-me, contudo, que quando numa hierarquia o topo significa o todo, a hierarquia reforça-se, não diminui.

Para significar que vamos morrer e ser devorados por vermes não é preciso um fresco numa igreja ou uma iluminura num manuscrito, ainda menos dezenas de frescos e iluminuras. Esta visão fatalista  reproduz-se, também, nas canções, nas cantigas e nos poemas apreciados por determinadas categorias da nobreza.

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Fig 45. Túmulo do Bispo Fleming. Catedral de Lincoln. Falecido em 1431.

Nos transi, a relação da alta sociedade com a morte é incontornável. Os transi são obra da alta nobreza, do alto clero e de algumas altas dignidades. Seguindo a vontade e o gosto das elites, uma vez que os “artistas” cingiam-se às encomendas. Nos transi, nomeadamente, de dois andares, a possante e magnífica vida do vivo depara com a infame e degradante morte do morto.

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Fig 46. Túmulo de Henri II e Catherine de Médicis, por Germain Pilon. Basílica de Saint Germain. 1575.

Os contrários aproximam-se, porventura demasiado, mas não se anulam nem ultrapassam. Retomando uma expressão cara a Gilbert Durand (Figures mythiques et visages de l’oeuvre: De la mythocritique à la mythanalyse, Paris, Berg International, 1979) e a Michel Maffesoli,  (“L’Homme contradictoriel”, in La Galaxie de l’Imaginaire. Dérive autour  de l’oeuvre de Gilbert Durand, Paris, Ed. Berg International, 1980, pp. 37-47) a relação entre a vida e a morte é contradictorial. O que está em jogo é a impotência da potência.

Vous, qu’une destinée commune
Fait vivre dans des conditions si diverses,
Vous danserez tous cette danse
Un jour, les bons comme les méchants.
Vos corps seront mangés par les vers.
Hélas! Regardez-nous:
Morts, pourris, puants, squelettiques;
Comme nous sommes, tels vous serez”

(Fala dos Músicos na Dança Macabra do Cemitério dos Santos Inocentes, segundo gravuras publicadas por Guyot Marchant em 1485)

A poesia medieval, sobretudo a cavaleiresca, reproduz este sentimento de fatalidade e de impotência a que é votada uma vida terrena caracterizada pela fortuna, pela paixão e pelo prazer. Nada é absoluto, tudo é relativo, nada perdura, tudo tem um prazo. Philippe Ariès e Johan Huizinga dedicam várias páginas a poemas medievais inconformados com este destino adverso. Recordo uma comunicação de Erich Köhler num colóquio dedicado, nos anos setenta, a Lucien Goldmann, no Palácio do Luxemburgo, em Paris. Atendo-se à sonoridade, demonstrou como a poesia cavaleiresca era melancólica, ver trágica (Köhler, Erich, L’aventure chevaleresque. Idéal et réalité dans le roman courtois, Paris, Gallimard, 1974).

“Dantes eu era bela mais que todas as mulheres
Mas por morte, tornei-me assim,
Minha carne era muito linda, fresca e macia,
Agora transformou-se toda em cinzas.
Meu corpo era muito atraente e muito bonito.
Eu costumava vestir-me com sedas
Agora sou forçada a estar toda nua.
Eu vestia-me de peles várias,
Vivia num grande palácio a meu bel-prazer,
Agora habito este pequeno caixão.
O meu quarto era adornado de finas tapeçarias,
Agora o meu túmulo está rodeado de teias de aranha”
(Versos de um fransi feminino de Avignon, em Johan Huizinga, O Declínio da Idade Média, Lisboa, Ulisseia,  [1919] 1996, p. 107).

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Fig 47. Túmulo de Sir John Golafre. Falecido em 1442. Fyfield, Osfordshire.

A melancolia e o “sentimento trágico da vida” (Unanumo, Miguel de, Del sentimiento trágico de la vida en los hombres y en los pueblos, 1912) ter-se-ão apoderado de algumas camadas da nobreza da Idade Média tardia. O excesso de vida coabita com a certeza da morte, num ímpeto de inversão anunciada. O transi é a petrificação de um poema trágico.

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Fig 48. Horae ad usum parisiensem – Heures de René d’Anjou, Rei da Sicília. 1434-1480.

“O homem de finais da Idade Média tinha uma consciência muito aguda de que estava morto a prazo, de que o prazo era curto, de que a morte, sempre presente no interior de si mesmo, quebrava as suas ambições e envenenava os seus prazeres. E esse homem tinha uma paixão pela vida que custa entender hoje, talvez porque a nossa vida se tornou mais longa (…). Durante a segunda metade da Idade Média, do século XII ao XV, produziu-se uma aproximação entre três categorias de representações mentais: a da morte, a do conhecimento por parte de cada um da sua própria biografia e a do apego apaixonado às coisas e aos seres possuídos em vida. A morte converteu-se no lugar a partir do qual o homem tomou, melhor que nenhum outro, consciência de si mesmo.” (Ariès, Philippe, Historia de la muerte en Occidente, Barcelona, El Acantilado, [1975] 2000, pp. 55-56).

Mudemos novamente de ângulo, porque tão pouco de disposições vive o homem. Também existem os actos. Um transi é um acto colossal impregnado de imaginário!

Um transi, escultura de um corpo em decomposição, numa campa ou num túmulo de dois andares, é, antes de mais, um memento mori monumental. É uma mensagem contundente, mas também didáctica. Apoiando-se, principalmente, no estudo dos túmulos de cinco eclesiásticos, Kathleen Cohen (Metamorphosis of a dead symbol: The Transi Tombs in the Late Middle Age and Renaissance. University of California Press, 1973, p.84) sustenta que estes “túmulos ensinam”.

“An important part of the statement of the transi tombs of the five fifteenth-century ecclesiastics – Lagrange, d’Ailly, Chichele, Fleming and von Sierck – was the warning that men must die and become food for worms. But this, as we have seen was only one part of the total statement of the tombs. The didactic element of these early transi tombs was closely linked with another, and more important function, the expression of hope for the salvation of the deceased”.

Regressemos à catequese pela imagem a que nem as gárgulas nas alturas escapam. Todas as pessoas na Idade Média acreditavam em Deus e na vida para além da morte (Febvre, Lucien, Le Problème de l’Incroyance au XVI siècle, Paris, Albin Michel, 1947). Temiam o inferno, resignavam-se ao purgatório e desejavam o céu.

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Fig 49. Paignton Devon. Church of St John. Fim séc. XV – Início séc. XVI.

Fala-se hoje em morte social durante a vida, ou seja, a “morte” em vida daqueles que perdem o calor , a interacção e os laços humanos. Será razoável falar, por inversão, de uma vida social na morte, uma vida dos mortos? De uma participação na vida apesar da morte? Quando dois anos após a morte, o túmulo é aberto para esculpir o transi, o morto está ou não a ter vida social? Visto, visitado, comentado e, eventualmente, temido por milhares de crentes, o morto é apenas carcaça ou cinzas? Se o túmulo é encarado como um acto de contrição, uma penitência ou um penhor de indulgência, onde começa e acaba a morte? A generalidade dos transi pede que se reze por eles; a quem e por quem se reza? As últimas moradas dos transi têm as portas abertas. O camponês sepultado fora da igreja nem sequer aspira a ser pó! Nos antípodas, andamos intrigados com o cardeal Lagrange, o arcebispo Chichele e o bispo Fleming. Admito que a noção de uma vida social na morte é insólita como, aliás, quase todas as ideias frescas.

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