A duas palavras, três porradas: A violência verbal como expressão da conflituosidade social no Alto Minho de Oitocentos

Alexandra Esteves

Resumo


O conceito de violência varia conforme o tempo e o lugar em que é considerado. O mesmo sucede com a forma como é encarado pela sociedade, pois, se nuns casos, certos comportamentos violentos são tolerados, noutros verifica-se a rejeição e a condenação. Ainda que a violência nem sempre seja criminalizada, não deixa, todavia, de constituir uma forma de agressão, que não tem de ser necessariamente física, pois também é possível ofender e brutalizar outrem através do recurso à palavra.

A iliteracia e uma certa rudeza das populações rurais dificultava a racionalização e a verbalização dos seus impulsos, pelo que o gesto prevalecia sobre a palavra, ou seja, a agressão física ganhava primazia em relação ao ataque verbal. A este propósito, se alguns autores consideram o instinto como o factor determinante no desencadeamento de acções mais belicosas e arrebatadas, outros, como Konrad Lorenz, interpretam-no antes como um travão. É o que depreendemos das suas palavras, quando afirma: «se o homem fosse um ser puramente racional, se não tivesse a sua herança animal de instintos, não seria certamente um anjo, antes pelo contrário»[1].

Todavia, na ausência de outros meios de transmissão e difusão de informação e conhecimento, circunstância agravada pelo analfabetismo que grassava no mundo rural, a palavra sobressaía como forma privilegiada de comunicação, com todas as implicações que isso podia acarretar. O peso da subjectividade facilmente se fazia sentir na construção de qualquer notícia, que, frequentemente, acabava por se confundir com a mera opinião, que ia sendo repisada, vezes sem conta, num espaço limitado e fechado onde todos se conheciam. Nestas circunstâncias, qualquer distorção, intencional ou não, podia ter consequências devastadoras. Assim, se desenvolvia a bisbilhotice, como forma de divulgação de novidades[2]. Mas a palavra também assumia uma função justiceira, moralizante e controladora, funcionando como instrumento de condenação contra aqueles que, pelo seu comportamento, punham em causa o sistema de valores e o código de conduta pelos quais se regia a sociedade. Deste modo, criavam-se os factos que alimentavam a calúnia que, propagada pela mexeriquice, servia de arma de arremesso no acto de injuriar, pondo em causa a honra e a dignidade do ofendido.

A própria comunidade instigava a maledicência com o objectivo de impedir o completo esbatimento da linha que separava o socialmente permitido daquilo que era reprovado. Quem desrespeitasse essa delimitação teria que se sujeitar à censura, materializada na difamação, cabendo aos mais próximos, não só física, mas também socialmente, essa tarefa, estando os vizinhos numa situação privilegiada para a levar a cabo[3].

A palavra assumia um valor simbólico, associada a vinganças privadas ou a códigos de honra desrespeitados, sobretudo num espaço marcado pela dureza do quotidiano, como era o mundo rural. A calúnia, que servia para desacreditar os visados no seio da comunidade, mais do que ferir o seu íntimo, procurava denegrir a sua imagem, fazendo-o cair em descrédito perante os demais. A sua conotação variava conforme o alvo era do sexo masculino ou feminino, apresentando geralmente, neste caso, uma forte carga sexual, como podemos constatar através das injúrias de que eram vítimas homens e mulheres[4].


[1] Konrad Lorenz, A Agressão. Uma História Natural do Mal (Lisboa: Relógio d’ Água, 2001),

[2] Sobre o mexerico no mundo rural confira-se Luís Polanah, «Mexerico e maldizer no mundo rural», Revista de Guimarães, n.º 103 (1993): 111. Leia-se igualmente Irene Vaquinhas, «Sangue, suor e lágrimas», em História da Vida Privada em Portugal. A Época Contemporânea, coord. Irene Vaquinhas (Lisboa: Círculo de Leitores, 2011), 361-367.

[3] Sobre o mexerico no mundo rural confira-se Luís Polanah, «Mexerico e maldizer no mundo rural», Revista de Guimarães, n.º 103 (1993): 111. Leia-se igualmente Irene Vaquinhas, «Sangue, suor e lágrimas», em História da Vida Privada em Portugal. A Época Contemporânea, coord. Irene Vaquinhas (Lisboa: Círculo de Leitores, 2011), 361-367.

[4] A honra afectada por palavras, bem como a difamação, a calúnia e a injúria, eram susceptíveis de punição segundo o disposto no Capitulo V, que se estende do artigo 407.º ao 420.º do Código Penal. Código Penal de 1852. Nos 150 anos do primeiro código penal português (1852-2002) (Lisboa: Edição do Ministério da Justiça, 2002), 125-127.


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