Os processos judiciais e a História

Irene Vaquinhas

Resumo


Na década de 1860, um juiz do tribunal de Coimbra justificava a atenuação da pena atribuída a um trabalhador rural, condenado num processo de injúrias, com o seguinte fundamento: «Atendendo a que em gente de qualidade d’ esta, inteiramente destituída de educação, as injúrias que reciprocamente se dirigem perdem muita da importância que teriam se tratasse de gente d’ educação e de bons sentimentos (…)»[1]. De um modo geral, os juízes oitocentistas ou primo novecentistas não são tão loquazes, cingindo-se nas sentenças aos aspectos técnico-jurídicos. Porém, ao exprimir juízos de valor e ao identificar como específico de uma classe social o respeito pela integridade da pessoa e dos bens, aquele magistrado não apenas se demarcava socialmente das classes populares rurais como admitia que estas se regiam por princípios próprios. Ao sistema penal não competia apenas punir mas também corrigir, tendo uma intenção moralizadora que aquele juiz deixara transparecer na sentença.

A escolha deste caso como ponto de partida para a minha intervenção não é arbitrária. Este introduz-nos no cerne dos processos judiciais e, em simultâneo, no universo social dos seus principais intervenientes, o qual se limita, entre meados do século XIX e as primeiras décadas do século XX, quase exclusivamente aos grupos sociais mais humildes. Ao tempo, o aparelho judicial estava orientado paravinha reproduzindo de forma assustadora

 

* Este texto baseia-se, em grande parte, no meu estudo intitulado «Entre gente sem qualidade: os processos judiciais e a história», Archivum et jus, Ciclo de Conferências (Actas Outubro 2004 – Abril 2005, Coimbra, Arquivo da Universidade de Coimbra, 2006), 91-107.


[1] Irene Vaquinhas, Violência, justiça e sociedade rural. Os campos de Coimbra, de Montemor-o-Velho e Penacova de 1858 a 1918 (Porto: Edições Afrontamento, 2006), 325.


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