Asilo de S. João do Porto – Beneficência e solidariedade maçónica. Os anos fundadores (1890-1918)

Maria José Moutinho Santos

Resumo


A CONDIÇÃO DOS «MENORES DESVALIDOS E EM RISCO MORAL»: DO CONTEXTO INTERNACIONAL A UM ESTUDO DE CASO

No último quartel do séc. XIX e até ao desencadear da 1.ª Guerra assistiu-se internacionalmente a uma inflexão no discurso multidisciplinar sobre a situação dos menores desvalidos e em risco moral. Marcado que foi esse discurso por uma acentuada intervenção de juristas, políticos, homens da ciência e da igreja, ele apontaria a transferência daqueles problemas do domínio tradicional estrito da caridade e da beneficência, para o âmbito de uma política social que, lentamente, se foi estruturando, conduzindo, em última análise e no plano legislativo, à realização na Europa do mais vasto e mais importante conjunto de reformas sobre a protecção da infância[1]. As revistas especializadas e os Congressos internacionais[2], que se tornaram importantes fóruns de discussão, tiveram nisso um papel fundamental, sendo que a imprensa genérica veio a servir de importante eco às teses apresentadas, ao mesmo tempo que, como também lhe competia, ia acompanhando a par e passo a crónica diária das crianças mendigas exploradas por pais e tutores, dos menores abandonados, dos pequenos vadios em quadros que a «questão social» vinha reproduzindo de forma assustadora.

Os debates iriam conduzir em diversas direcções, mas tornou-se incontornável perspectivar medidas de adequada institucionalização desses menores em risco que era necessário, em múltiplas circunstâncias, retirar da rua ou da família «problemática », corruptora ou simplesmente fragilizada pela miséria, a doença, a morte ou o abandono de um, ou até dos dois, progenitores. Essa perspectiva iria levar ao aparecimento na Europa de muitas instituições de iniciativa pública ou privada, religiosa ou laica, para acolhimento de crianças, cujos promotores assumiram um projecto de futuro para elas, proporcionando-lhes instrução, educação moral e religiosa e uma formação profissional, dentro ou fora de portas, preparando-as, assim, para se tornarem cidadãos úteis à sociedade.

Conhece-se, contudo, a complexidade do processo, tanto pelo que dizia respeito às famílias – bastando recordar os escolhos levantados pelo inexpugnável reduto do pátrio poder[3] –, quanto pelas características de muitas das instituições de acolhimento que, ao invés de proteger, abusavam ou permitiam abusos sobre os menores que era suposto estarem sob a sua protecção.

Logo na década de oitenta esse discurso multidisciplinar teve eco em Portugal através da acção divulgadora de alguns especialistas, como Ferreira Deusdado[4]. Contudo, faltaram em tempo útil as políticas sociais necessárias para não deixar soçobrar os projectos (e as reformas) que haviam sido delineadas em favor dos menores. Apesar disso, a gravidade do contexto económico e social dos finais do século XIX veio conduzir a um conjunto de medidas que se poderiam considerar de urgência. No Porto, por exemplo, o encerramento de numerosas oficinas, sobretudo ligadas à tecelagem do algodão e à chapelaria, os despedimentos de grande número de operários, a redução dos salários de muitos outros, foram factores que tornaram importantes fóruns de discussão, tiveram nisso um papel fundamental, sendo que a imprensa genérica veio a servir de importante eco às teses apresentadas, ao mesmo tempo que, como também lhe competia, ia acompanhando a par e passo a crónica diária das crianças mendigas exploradas por pais e tutores, dos menores abandonados, dos pequenos vadios em quadros que a «questão social»


[1] Cfr. Marie-Sylvie Dupont-Bouchat, Eric Pierre, Enfance et Justice au XIX siècle (Paris: PUF, 2010): 422.

[2] Teve lugar em Paris, em 1883, o 1.º Congresso Internacional de Protecção à Infância, precedido em 1878 pela criação da Sociedade para a Protecção da Infância Abandonada e Culpada. A partir de 1895 foi criada uma secção dentro dos Congressos Penitenciários Internacionais para se ocupar exclusivamente dos problemas ligados à infância e aos menores.

[3] Muitas dessas crianças eram exploradas pelos próprios progenitores através da mendicidade ou mesmo expondo-as à prostituição.

[4] Ferreira Deusdado foi delegado ao Congresso de Antropologia Criminal de Paris (1889) e ao Congresso Penitenciário Internacional de S.Petersburgo (1890), tendo publicado em consequência, além da sua própria comunicação, um resumo dos trabalhos que abrangeram, num e noutro fórum, diversas proposições sobre a problemática dos menores. Cf. Estudos sobre Criminalidade e Educação e O Ensino Carcerário e o Congresso de S. Petersburgo.


Apontamentos

  • Não há apontamentos.