O pendor socio-político da regulação da filiação ilegítima em Portugal: da Lei de Protecção aos Filhos (1910) ao Código Civil de 1966

Helena Machado

Resumo


BREVE RESENHA HISTÓRICA DA INVESTIGAÇÃO DE PATERNIDADE EM PORTUGAL

A convergência dos sistemas jurídicos da Europa Ocidental, no que diz respeito à regulação legal das relações de filiação, decorre, em grande medida, do impacto do direito romano, que criou uma relativa homogeneidade entre os diferentes sistemas jurídicos nacionais. Distingo duas dimensões essenciais da regulação jurídica das relações de filiação, existentes no direito romano, e que se tornaram os pilares básicos da legislação produzida e aplicada nesse domínio específico, nos diferentes países: (i) o primado do casamento institucional como fonte das relações de filiação e a (ii) distinção entre filiação legítima e a filiação ilegítima.

O primado do casamento institucional como fonte das relações de filiação revela- se de um modo particularmente claro na máxima latina pater is est quem nuptiae demonstrat – o pai é o marido da mãe – que existia no antigo direito romano e que subsiste ainda, nos dias de hoje, na esmagadora maioria dos sistemas jurídicos europeus[1].

Em relação ao segundo fundamento das relações de filiação que referi (também este já existente no direito romano), assentava no princípio de que o filho era legítimo se o pai era casado com a mãe; verificando-se a filiação ilegítima quando, no momento do nascimento do filho, o pai e a mãe não eram casados entre si. Os filhos de pais nestas condições distinguiam-se em filhos naturais, quando os pais não eram casados no momento do nascimento, mas legalmente nada os impedia de contraírem matrimónio, se o desejassem; e em filhos espúrios, que englobavam os adulterinos e os incestuosos. Os filhos adulterinos diziam respeito aos nascidos de pessoas que não eram casadas uma com a outra, sendo uma delas ou ambas casadas com outra pessoa. Os filhos incestuosos eram os nascidos de pessoas que não podiam casar entre si por serem parentes ou afins em linha recta ou parentes no segundo grau da linha colateral. Esta separação binária e consequente desigualdade de estatuto jurídico que rodeava a classificação dos filhos consoante as circunstâncias do seu nascimento vigorou na Europa até pelo menos meados da década de setenta do século XX.

Em Portugal, a distinção entre filiação ilegítima e legítima existiu em todas as legislações formais produzidas até à «Reforma da Filiação» de 1977[2]. Tanto no direito filipino como no primeiro Código Civil Português era proibida a perfilhação tanto dos filhos adulterinos como dos incestuosos[3]. Até à publicação deste Código, também denominado Código de Seabra, em 1867, os filhos nascidos de pais não casados que não fossem perfilhados podiam livremente investigar a sua paternidade.

Uma vez entrado em vigor, estabeleceu-se que a investigação de paternidade só por excepção se podia realizar, em três circunstâncias muito concretas: «1 – existindo escrito do pai em que expresse a sua paternidade; 2 – achando-se o filho em posse de estado, isto é, reputado como tal pelo pretenso pai e pela comunidade; 3 – no caso de estupro violento ou de rapto»[4]. Estas condições de admissibilidade jurídica da investigação de paternidade eram comuns às estabelecidas pelo denominado Código de Napoleão, promulgado em França em 1804, e cujos princípios legislativos fundamentais foram adoptados por vários países como Espanha, Bélgica, Luxemburgo e Itália.


[1] Para uma abordagem pormenorizada da aplicação da regra Pater is est… em diversos países europeus, conferir o interessante estudo de Patrick Senaeve, «The reform of affliattion law in France and the Benelux Countries», em Parenthhod in modern society. Legal and social issues for the twenty- -first century, org. John Eekelaar e Petar Sarcevic (Dordrecht: Martinus Nijhoff Publishers, 1993). Em Portugal, a presunção de que o pai é o marido da mãe, encontra-se em vigor pelo estabelecido no art.º 1826 do Código Civil. Até à entrada em vigor do Decreto-Lei n.º 273/2001 de 13 de Outubro, tinha que decorrer um processo de afastamento de presunção de paternidade em relação ao marido da mãe, para que fosse admitida a perfilhação do menor por terceiro. Com a referida alteração legislativa (que operou uma transferência de competências em processos de carácter eminentemente registral dos tribunais judiciais para os conservadores de registo), nos casos em que a mãe do menor declare que o respectivo marido não é o pai da criança, é de imediato admitida a perfilhação por outro indivíduo. O marido da mãe é notificado para, querendo, impugnar a paternidade constante do registo ou, se esta for omissa, efectuar a perfilhação.

[2] Fernando Pinto, Filiação natural (Porto: Ecla Editora, 1995).

[3] Art.º 122 CC, 1867: 24.

[4] Art.º 130 CC 1867: 25.


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