Eugenismo criminal em Portugal? Saberes médico-legais, catolicismo e controlo social (c. 1910 – c. 1940)

Tiago Pereira Marques

Resumo


Na década de 30 do século XX, a legislação penal italiana, que a par das medidas penais retributivas consagrou um sistema sancionatório de medidas de segurança baseadas no critério de perigosidade dos criminosos assente na concepção de uma predisposição biológica para o crime, foi adoptada nos circuitos internacionais onde se discutia a reforma penal e penitenciária como modelo de reforma dos códigos penais[1]. Portugal participou plenamente nesse debate, não só enquanto receptor de modelos estrangeiros, mas, em certos momentos, como veremos, indicando vias de reforma. Ora, no debate internacional sobre as medidas de segurança, durante o período que mediou entre as duas guerras mundiais, os criminólogos concentraram- se num problema relativamente novo: se os criminosos eram biologicamente predispostos e transmitiam as suas tendências criminosas à descendência, tal como a ciência parecia demonstrar; e se o Estado tinha o direito e o dever de defender a sociedade do perigo que os criminosos representavam, deveriam as leis criminais incluir medidas específicas para resolver o problema? Por outras palavras, deveria o Estado impedir os criminosos de procriarem? Este era o problema central do que então se designou de «eugenismo criminal», problema que se desdobrava numa série de questões, doutrinais e práticas, em torno da esterilização e da castração de criminosos: a sua utilidade, legitimidade, casos em que deveriam ser aplicadas e seus efeitos na redução da criminalidade.

Este texto pretende situar os representantes da criminologia e das ciências penais portuguesas neste debate. Num primeiro momento, caracteriza-se o contexto institucional português nas suas ligações com as propostas da antropologia criminal, centradas na ideia de perigosidade como base de um sistema sancionatório estatal «moderno». Analisamos, num segundo momento, as formas de penetração do discurso eugénico em Portugal. Atenta-se, em particular, à conformidade portuguesa ao eugenismo latino característico dos países católicos durante as décadas de 20 e 30. Por fim, analisa-se a posição dos penalistas portugueses no debate internacional sobre o eugenismo criminal. Argumentaremos que, embora no plano institucional e legal Portugal oferecesse um terreno propício ao surgimento e à aplicação de medidas de «eugenismo criminal», a institucionalização destas medidas esbarrou num sistema de valores fundamentado em termos religiosos e com o qual se imbricavam as representações relativas à diferença sexual entre homens e mulheres.

 

 

*Este texto beneficiou do debate que se seguiu à exposição de uma sua versão inicial no Colóquio Internacional Administração e Justiças na Res Publica e das valiosas sugestões de alguns intervenientes. Endereço uma palavra particular de reconhecimento a António Araújo e a Irene Flunser Pimentel.

** Centro de Estudos de História Religiosa (Universidade Católica Portuguesa), Institut d’ Histoire et de Philosophie des Sciences et des Techniques (Universidade de Paris 1).


[1] Tiago Pires Marques, «La riforma penale fascista italiana: un modello internazionale», Studi sulla questione criminale, III, n.º 1 (2008): 75.


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