1) Que vantagens vê numa formação académica em Jornalismo/Comunicação para o exercício da profissão de jornalista?
Em tempos, perguntaram a um célebre jornalista americano formado apenas na “tarimba” se ele sentia falta de ter frequentado um curso de Jornalismo / Comunicação. Ele respondeu algo do género (cito de cor): “Se calhar, aprendi no dia-a-dia, trabalhando numa redacção, praticamente tudo o que um curso de Jornalismo me teria ensinado. Mas demorei muito mais tempo a aprender essas coisas – e aprendi, em muitos casos, à custa de erros desnecessários. Ou seja, teria poupado tempo e esforço se tivesse feito o curso…”.
Como eu próprio costumo dizer, não tenho bem a certeza de que seja possível ensinar a fazer Jornalismo; mas tenho a certeza de que se aprende a fazer Jornalismo… E aprende-se de muitas formas, em muitos contextos, com múltiplas velocidades. Uma das formas de aprender alguma coisa de Jornalismo é a formação académica, sem dúvida. A sua maior vantagem, na minha opinião, não está na aprendizagem técnica, no sentido mais estrito do termo. Se é apenas de técnicas que se trata, isso aprende-se relativamente depressa num qualquer curso de formação profissional acelerada: fazer uma notícia, construir um “lead”, preparar uma entrevista, desenhar uma primeira página, escolher um título, pesquisar dados na Internet… O que se pode e deve aprender num curso superior é, sobretudo, o que está ANTES das técnicas (“isto é ou não é notícia?… E porquê?… A quem dou ou não dou voz?… Por que puxo isto e não aquilo à primeira página?… A que propósito me fizeram chegar esta informação precisamente agora?…”) e o que está DEPOIS delas (“Sei o que é que estou a fazer?… Que repercussões terá esta reportagem?… Tenho o direito de invadir assim o espaço daquela pessoa?… Depois de fazer isto, não devia ir fazer aquilo?…”). Ou seja, é muito menos o “quê”, o “quem”, o “onde”, o “quando” fazer, e muito mais o “como” fazer, o fazer “porquê”, o fazer “para quê”. E isso ensina-se olhando à volta, com olhar crítico, o que é hoje e como funciona o jornalismo, para o bem e para o mal. Ensina-se compreendendo como funcionam as sociedades complexas em que vivemos, com os contributos da sociologia, da psicologia, da economia, da política, da ética, da comunicação em sentido lato, da cultura, enfim. Ensina-se reflectindo sobre o papel que tem ou não tem (e pode ou não pode, e deve ou não deve ter) o jornalismo nos nossos dias. Como dizia alguém para os professores de uma escola de Jornalismo: “Ensinem-nos a pensar, a pensar bem, que nós depois ensinamos-lhes rapidamente as técnicas…”.
Ou seja: mais do que ensinar a “fazer jornalismo”, no sentido de “praticar actos de jornalismo” – algo hoje em dia perfeitamente acessível a qualquer mortal com um mínimo de espírito de observação e dois dedos de testa –, um curso superior deve contribuir para se aprender a “ser jornalista”. É mais do domínio do “ser” do que do “fazer”, com tudo o que isso implica em termos de uma identidade profissional específica. Uma identidade que se declina em saber, em saber-fazer e em saber-ser. Uma identidade com uma componente cognitiva – a das capacidades e competências – mas também (sobretudo?) com uma componente normativa – a das “boas práticas”, das regras, dos princípios, dos valores.
Esta minha perspectiva pressupõe, naturalmente, que a formação total de um jornalista estará sempre incompleta se se restringir à formação académica. Mesmo que esta inclua uma alargada componente prática, há muita coisa prática que só se aprende com a experiência em contextos profissionais – e em contacto directo, activo, quotidiano, com outros profissionais. Sucede assim com todas as profissões. Entre outros aspectos, convém não esquecer que os trabalhos práticos realizados em contexto escolar são, digamos assim, “irresponsáveis”: ninguém morre, nem vai preso, nem nos coloca um processo judicial, se o exercício jornalístico que fizemos não tiver cumprido as regras. A aprendizagem da responsabilidade, no fundo, só se faz quando aquilo que escrevemos é publicado – e com o nosso nome por baixo. E isso não se aprende numa aula.
2) Que resposta deve a formação académica dar aos efeitos da associação do mercado e das novas tecnologias ao jornalismo?
A formação académica vive neste mundo e prepara os profissionais para este mundo – não para o mundo dos anjos. Com sentido reflexivo e crítico, sem dúvida, mas sem esquecer a realidade com que se tece a comunicação social. O mercado existe e os produtos/serviços jornalísticos são também, em alguma medida, mercadorias que é preciso saber vender bem. Vender de modo honesto e não a qualquer preço, mas vender bem (até para poder manter a independência). Ou seja, comunicando com aquelas e aqueles em nome de quem se faz jornalismo.
Mas o mercado não é tudo, não é a única lei, o único deus. Há mais vida e mais lógicas para além do mercado. Quando falamos de jornalismo, falamos de um bem público que as sociedades democráticas devem garantir aos cidadãos. É o que se passa em diversas áreas que implicam com os nossos direitos fundamentais: a saúde, a educação, a justiça… Estas áreas não são, por regra, deixadas única e exclusivamente ao livro arbítrio do mercado, por se entender que há aspectos fundamentais que pode ser necessário acautelar, através de um poder regulador que compete ao Estado. O acesso à informação, a uma informação completa, abrangente, independente, livre, responsável, é um direito fundamental para um bom exercício da cidadania. Portanto, nem tudo se pode resumir ao mercado.
Quanto às novas tecnologias, elas fazem parte da nossa vida quotidiana em todos os domínios, e também no jornalismo. Mas também aqui uma formação adequada não pode restringir-se à aprendizagem mais ou menos instrumental de todos os “gadgets” de que dispomos actualmente. Desde logo, porque atrás de uma máquina ou de um botão continua a estar sempre uma pessoa, uma cabeça que decide se o dedo carrega ou não carrega. Assim, o questionamento da própria tecnologia e da sua articulação com o humano deve fazer parte de qualquer curso superior que se preze, seja na comunicação, seja em qualquer outro domínio do saber.
3) Defende uma formação sobretudo técnica (estudo e prática da técnica profissional) ou alicerçada numa componente mais reflexiva (estudo do Jornalismo integrado no universo mais vasto da Comunicação)? Porquê?
Julgo que esta questão já foi respondida no ponto 1. Julgo que as coisas não podem colocar-se em termos de “ou… ou…”. Há uma necessidade de ambas as abordagens e uma evidente complementaridade entre elas. Mas insisto que, em minha opinião, só faz sentido criar cursos superiores de jornalismo / comunicação se eles se orientarem para uma formação que vá para além de uma espécie de ensino técnico-profissionalizante.
4) Que ligação deve existir entre a academia (cursos de Jornalismo/Comunicação) e a profissão, durante o período lectivo e na fase de estágio?
Gostaria de ver uma ligação muito maior entre a academia e a profissão, com trânsito nos dois sentidos. Como sugeri atrás, entendo que a inserção em contextos profissionais (que não pode resolver-se com uns meros três meses de estágio curricular, embora estes sejam muito úteis) é um elemento essencial para a formação dos jornalistas. Algum tipo de colaboração sistemática e regular devia encontrar-se entre estes dois universos. Mas este é assunto para uma reflexão mais prolongada, que espero trazer aqui em breve.
Joaquim Fidalgo | jornalista | UMinho