A morte e a loucura, se não andam de braço dado, andam, frequentemente, de mãos dadas. Ao nível do imaginário, naturalmente. Na dança macabra alemã, do séc. XVI (Figura 1), o louco não dá, contra o costume, a mão à morte. As demais figuras dão a mão a dois esqueletos, um de cada lado da fila de dança. Exceptuando o homem de armas que, em vez de dar a mão direita à morte, a dá ao louco. O louco não dá nenhuma mão à morte, nem a direita, nem a esquerda. É o primeiro da fila, visivelmente, a contracorrente. Como compreender este estatuto excepcional? Poderá o louco ocupar o lugar da morte? Em determinadas circunstâncias, até parecem intermutáveis. Acresce que a posição do louco nesta dança macabra não é um caso isolado: na Dança e Canção da Morte, publicada por John Audelay, em 1569 (Figura 2), o louco é apresentado numa situação similar: no início da fila, sem dar a mão à morte.
A figura do louco é caracterizada pela liminaridade. Marginal, nem aqui, nem além, num rodopio excêntrico, sem pouso nem sentido fixos, a “nave dos loucos” não tem cais onde arrimar, nem destino a cumprir. Os territórios baralham-se, mesmo na última travessia, a da hora da morte.
“Voltando, pois, à felicidade dos loucos, devo dizer que eles levam uma vida muito divertida e depois, sem temer nem sentir a morte, voam direitinho para os Campos Elísios, onde as suas piedosas e fadigadas almazinhas continuam a divertir-se ainda melhor do que antes” (Erasmo, Elogio da Loucura).
“Sem temer nem sentir a morte”, os loucos não têm barca nem trânsito predefinidos. Como o parvo do Auto da Barca do Inferno, peça de Gil Vicente que lembra as danças da morte.
Esta ligação entre o louco e a morte aparece em muitas imagens. O louco e a morte envolvem-se, por vezes, numa luta grotesca (Figura 3), como na letra R do Alfabeto da Dança da Morte, de Hans Holbein (1523). Escusado será dizer que só um louco ousa lutar com a morte. Noutros casos, a morte adopta a roupa e os adereços típicos dos loucos (bobos). Na Dança da Morte de Heinrich Knoblochtzer (c.1488), a morte, trajada de louco, dá a mão a um capelão (Figura 4). Esta figura da morte travestida em louco repete-se na Dança da Morte de Wilhelm Werner von Zimmern (c. 1600), com a morte a conduzir um franciscano, bem como na gravura A Mulher e a Morte de Hans Sebald Beham (1541), em que a morte, trajada como um louco, incluindo o bastão de ar, abraça uma donzela (Figura 5).
Será esta ligação entre a loucura e a morte exclusivo da fantasia medieval? Talvez não. Hugo von Hofmannsthal escreve, em 1893, a peça dramática O Louco e a Morte. Raul Brandão retoma o título numa farsa publicada em 1923: O Doido e a Morte. Eis a sinopse:
“O Governador Civil, Baltazar Moscoso, dramaturgo frustrado, tenta escrever mais uma das suas peças medíocres. O contínuo Nunes avisa-o que o Senhor Milhões o vem visitar com uma carta de recomendação do ministro. Ao ser recebido, o Senhor Milhões liga a campainha eléctrica da secretária a uma caixa que transporta consigo, comunicando que acaba de activar uma bomba, a qual rebentará daí a vinte minutos. Perante o desespero do Governador Civil que se vê abandonado por todos, inclusive a sua mulher, D. Ana, o Senhor Milhões faz a crítica demolidora das convenções sociais e a defesa de um sentido último para a Vida; o próprio Governador Civil admite ter sido a sua uma mentira. E, na iminência da explosão, chegam dois enfermeiros, que vêm buscar o Senhor Milhões, o doido. Afinal, a bomba era apenas algodão em rama e não o temido peróxido de azoto, o que leva o Governador Civil a soltar um palavrão entre a raiva e o alívio” (O Doido e a Morte, Edições Colibri).
À semelhança do Auto da Barca do Inferno, O Doido e a Morte, de Raul Brandão, bebe na matriz das danças macabras. A vítima é reduzida à sua condição miserável, não pela morte, mas por um louco. A arte de desmascarar tanto está associada à morte como à loucura. É, talvez, o atributo mais temível do bobo da corte.
A modernidade encerra, no entanto, alguma particularidade. Com tanta razão, tanto espírito positivo, tanta promessa de salvação, tanto juízo, a morte descompensou. Para além de vestir a roupa do louco, a morte, ela própria, endoideceu. Encontramo-la assim, louca, nos quadros de James Ensor (Figuras 6 e 7), Otto Dix e George Grosz. A morte anda à solta, mais maluca do que nunca: zombies, Halloween, death metal, Tim Burton… Para nossa perdição no “julgamento das almas” que se avizinha. Conduzidos por um louco ou por um esqueleto, estamos condenados a caminhar para a morte, sem nos enganar no caminho.
Notas de rodapé:
Sobre o tema do louco e da morte, aconselho a leitura do artigo de Sophie Oosterwijk, “Alas, poor Yorick”. Death, the fool, the mirror and the danse macabre”, acessível no seguinte endereço:http://www.academia.edu/665091/Alas_poor_Yorick._Death_the_fool_the_mirror_and_the_danse_macabre.
Existem dois livros notáveis sobre a história do tratamento da loucura no Ocidente: a História da Loucura, de Michel Foucault, e L’Ordre Psychiatrique, de Robert Castel.
No vídeo O Desconcerto do Mundo, os primeiros minutos são preenchidos com imagens de danças macabras, acompanhadas com uma canção sobre o Triunfo da Morte. Está acessível no seguinte endereço:http://tendimag.com/?s=desconcerto+do+mundo.